Raquel Melilo, prof. de Geografia e Itinerário formativo do EM | 19 de dezembro de 2023
O “exercício da liberdade” tornou-se uma valiosa ferramenta discursiva para validar uma série de coisas: de cursos educacionais à consultoria sentimental. Esse é um dos objetivos finais do processo educativo. Mas como qualquer palavra que tenha um uso indiscriminado, “liberdade” pode perder sua potência como ferramenta de mudança. O controle da liberdade foi, por muito tempo, forma de governo (enquanto gestão de indivíduos, não necessariamente de Estado).
No contexto escolar, não há mais tanto espaço para o controle de liberdades. Até a arquitetura das instituições educacionais tem mudado de perspectiva: deixam de privilegiar um esquema rígido de vigilância para respeitar a organicidade da relação espaço/aprendizagem. Assumimos, então, que estamos diante de um contexto histórico privilegiado: lidamos com indivíduos que têm capacidade de entender e exercitar a liberdade. Será?
Um dos dispositivos mais conhecidos da literatura foucaultiana, em função das análises que o autor empreendeu sobre a loucura, a sexualidade e as prisões, é o dispositivo disciplinar. Ao analisar especificamente o poder de polícia, Foucault desloca seu olhar para o dispositivo de segurança, porém não como substituto ao dispositivo disciplinar. Os dois coexistem no mesmo campo de estratégias políticas de controle e coerção social, mas enquanto a disciplina é exercida sobre o corpo dos indivíduos, a segurança atua sobre o conjunto da população.
A disciplina, por definição, regulamenta tudo, não deixa escapar nada. Já o dispositivo de segurança tende perpetuamente a se ampliar. Novos elementos são o tempo todo integrados. Integra-se a produção, a psicologia e outros fatores com o objetivo de exercer controle sobre o corpo e a mente dos indivíduos. Trata-se de deixar circuitos cada vez mais amplos se desenvolverem, ou seja, é o deixar fazer, o famoso “laisse faire”. Essa liberdade, compreendida por Foucault tanto como uma ideologia quanto como uma técnica de governo, deve ser entendida no interior das mutações e transformações das tecnologias de poder. O princípio de cálculo desse custo de fabricação da liberdade é o que Foucault chama de segurança. Mas como se fabrica liberdade?
Primeiro, tem-se que entender que a fabricação de algo está relacionada à categorização desse algo como mercadoria. Algo tangível, alcançável e conquistável. A “liberdade de expressão”, por exemplo, foi pretensamente adquirida por meio da criação de diversas estratégias que permitiram que uma rede de opiniões e visões acerca de tudo e todos ganhasse espaço. É o que chamamos de rede social. De dispositivos de controle, passamos aos aplicativos. Da liberdade cerceada à liberdade fabricada. Nesse cenário, qual a função da escola e dos educadores?
Ao menos nas instituições com valores democráticos, pode-se dizer que há um consenso: dispositivos disciplinares coercitivos estão em desuso. Caberia, portanto, aos educadores o trabalho de ampliar visões sobre os sentidos da palavra liberdade e resgatar a definição de Cecília Meireles: “Liberdade é uma palavra que o sonho humano alimenta, que não há ninguém que explique e ninguém que não entenda”. É preciso trabalhar com o lirismo e com o pensamento filosófico. Para além disso: reforçar o caráter coletivo do exercício da liberdade como a potência para criação de um mundo melhor e mais justo. Sonhar, portanto.
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